Estudo sobre a participação feminina nas gangues em Brasília – DF

A tendência é mundial. No Brasil, como no mundo, as meninas estão cada vez mais presentes em gangues e de forma mais ousada, enfática e participativa. Em paralelo a um processo crescente de vitimização e vulnerabilidade dos jovens, a multiplicação destas redes sociais já acontece em todo o país.

Ironicamente, o Distrito Federal – sede do Governo brasileiro e onde são traçadas as diretrizes fundamentais para promoção dos direitos dos adolescentes – é a região na qual a questão social das gangues se delineia de forma mais dramática, apresentando o retrato mais característico de uma juventude brasileira que vive no limiar entre o legal e o ilegal.

A socióloga Miriam Abramovay, coordenadora de pesquisa da Rede de Informação Tecnológica Latino-americana (Ritla), acompanha o incremento da participação feminina nas gangues há mais de 10 anos – época em que publicou, pela Unesco, um livro-pesquisa sobre a relação entre a juventude e a violência brasilienses. “Desde aquele momento, percebi que as poucas meninas que já integravam estas redes desempenhavam papéis muito subordinados: essencialmente, elas ajudavam os namorados ‘gangueiros’. Chamou minha atenção também não encontrar por aqui gangues exclusivamente femininas, como as que existem nos Estados Unidos, por exemplo”, explica Miriam.

Essa curiosidade a fez mobilizar esforços para uma nova pesquisa, agora com foco nas relações e representações de gênero nas gangues do Distrito Federal, que durou três anos. O resultado está nas 314 páginas do livro “Gangues, gênero e juventudes: donas de rocha e sujeitos cabulosos”, lançado em junho e que representa um passo inédito no estudo da questão de gênero dos grupos de jovens brasileiros.

A pesquisa obteve diversas conclusões no que diz respeito à questão das relações de gênero dentro das gangues de Brasília. Questões como gravidez não planejada, abortos, sofrimento por amores rompidos, disputa entre mulheres por homens – comumente líderes nas gangues -, namoros, traições e as experiências de “ficar” e “pegar” permearam as entrevistas.

Os meninos de gangues reproduzem padrões tradicionais de comportamento machista: apelidam as meninas com nomes depreciativos e separam as que acham que podem namorar, “ficar” ou ter algum tipo de aventura. Eles ainda tendem a qualificá-las como fracas, falsas e não confiáveis.

Mas, de acordo com o estudo, há aquelas que são respeitadas, consideradas brothers, companheiras de aventura e protegidas nas festas e brigas. As que merecem este tratamento, parece ser muito mais por demonstrarem valentia e lealdade à gangue e serem “boas de briga”, do que por terem algum tipo de relação de afeto ou sexual com outros gangueiros. Muito poucas são consideradas “donas de rocha”, gíria dos gangueiros para definir as mulheres valentes, enquanto muitos meninos podem ser “sujeitos cabulosos”.

As meninas não necessariamente passam a idéia estereotipada de fragilidade ou submissão. “Em relação às questões de gênero, muita coisa mudou e muita coisa ainda é igual: se antes as meninas eram apenas namoradas e ajudavam, hoje as gangues possuem alas e setores femininos e as mulheres têm funções mais definidas. Elas não desempenham somente um papel acessório. Mas ainda há gangues exclusivas de meninos, que tratam as jovens de maneira pejorativa”, afirma Miriam.

Segundo a pesquisa, o poder feminino nas gangues é comumente exercido sobre outras meninas ou novatas. Nas entrevistas e grupos focais, os pesquisadores puderam notar que as meninas falam mais entre elas, se contam vantagens, mas na presença dos homens elas se calam e são eles que detêm o privilégio da palavra.

Além disso, o grupo de estudiosos observou que nem todas as meninas rompem com a divisão sexual do trabalho e muitas permanecem desempenhando papéis bem subordinados – despistar a polícia, servir de isca e carregar a lata de spray. Mas há também aquelas que não aceitam passivamente esta restrição e picham, brigam, enfrentam a polícia e as gangues rivais.

Mergulho profundo

Para entender o papel das meninas nas gangues candangas, a equipe de pesquisa mergulhou no universo das gangues de Brasília. A pesquisa mapeou o cotidiano dos 13 principais grupos de pichadores que atuam na capital federal – tanto no Plano Piloto quanto nas periferias -, traçando um perfil dos jovens que as integram por meio da imersão na pesquisa de campo, com acompanhamento contínuo e entrevistas com 73 membros. “Selecionamos gangues essencialmente de pichação. Individualmente, eles podem até vender droga, mas a atividade não pode ser caracterizada como tráfico”, explica Miriam.

Segundo a pesquisadora, o que estes jovens querem, de fato, é ocupar os espaços da cidade. Basicamente, muros. E eles fazem isso através da pichação. A coordenadora do estudo explica que os membros de gangues têm muita dificuldade em se relacionar com a cidade e seus espaços, e por isso querem marcá-la publicamente com suas assinaturas.

No prefácio do livro, o antropólogo Luiz Eduardo Soares define as gangues como “redes sociais de jovens que empregam suas energias em intervenções transgressoras no espaço urbano, mobilizando a violência como forma de linguagem ordinária”. “Seu sentimento em relação à sociedade é de raiva e revolta. Se consideram injustiçados e sem espaço. Falam muito mal da polícia e dos políticos”, afirma Miriam.

A origem destes jovens é distinta. Se há 10 anos, em seu primeiro estudo, a socióloga detectou gangues distintas no Plano Piloto e na periferia de Brasília, hoje, segundo ela, o cenário é mais homogêneo. “Tudo está misturado, classe média com classe baixa. As gangues não têm mais localidades geográficas específicas, elas atuam e podem estar em vários lugares”.

O estudo concluiu que a idade média dos gangueiros oscila entre 16 e 17 anos, embora haja exceções. Seu cotidiano varia, mas grande parte deles está na escola, trabalha e alguns até cursam faculdade. Eles contaram aos pesquisadores que costumam começar a pichar na escola – já que não se interessam em aprender o conteúdo que é ali ensinado, os ensinos Fundamental e Médio servem para o aprendizado e aprimoramento do grafite e para o treino sua assinatura, sua identidade dentro da gangue.

A gangue é parte de uma vida dupla que eles tocam. Estar ali, pertencer a ela e pichar em lugares ousados e arriscados é a adrenalina que move a participação destes jovens. Muitos integrantes vão envelhecendo e não conseguem largar o grupo. A pichação é praticamente um vício”, revela Miriam, a partir do contato que travou com as gangues. Ela conta que ficou surpresa quando soube que muitos dos gangueiros entrevistados conheciam seu livro sobre o tema e que faziam questão de participar da pesquisa.

O grupo de pesquisadores aproveitou esta empolgação e levou muitos jovens de volta às escolas, já que estipulou a frequênica às aulas como pré-requisito para participar dos grupos focais. “Os adolescentes foram muito cooperativos com nossa equipe. Foi uma relação de troca, pois eles recorriam e contavam conosco em diversos momentos de necessidade – situações como detenção, gravidez e parto, etc. São jovens completamente desprotegidos, não têm apoio algum do Estado e nem mesmo de suas famílias, fragilizadas, impotentes e incapazes de interferir na atuação dos filhos nas gangues”, detalha Miriam.

O livro é fruto de parceria entre a Ritla, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e também a Central Única de Favelas (Cufa-DF). Max Maciel, coordenador geral da Cufa-DF e co-autor do livro, explica que a Central serviu como ponte de aproximação entre o grupo de pesquisa e as gangues. Ele diz ter tido uma trajetória de vida muito parecida com as dos gangueiros e gangueiras brasilienses: busca pela auto-afirmação, reconhecimento, poder e prestígio. Mesmos problemas e anseios, porém rumos distintos.

“As Cufas são comunidades que convivem com várias práticas urbanas, inclusive as gangues. Por isso, servimos como ponte de aproximação e, é claro, como uma interface de confiança, com linguagem bem próxima destes jovens. A Cufa vivencia com proximidade a realidade deles, mas ajudar a promover esta pesquisa é, para nós, uma maneira de saber, de fato, quem realmente são estes jovens, tantas vezes taxados como delinquentes e marginais, e como se articulam e se organizam. Sabemos com clareza, hoje, que eles não são delinquentes – apesar de alguns cometerem delitos –, mas sim jovens de potencial desperdiçado pela ausência de uma rede de controle social”, defende Max.

A epígrafe do livro traz uma música da funkeira Tati Quebra Barraco, cuja letra exalta a valentia da mulher. O grupo de co-autores chegou a considerar a hipótese de convidar os gangueiros, tão importantes para a pesquisa, para seu lançamento, mas logo abandonou a ideia. “Ficamos com medo de reuni-los num só local pois eles pertencem a gangues rivais. E o sentimento de vingança e rixa é muito grande”, conta Miriam Abramovay.

A realidade observada minuciosamente no livro é bem peculiar aos jovens do DF. Ainda em seu prefácio à publicação, Luiz Eduardo Soares a define como uma “cartografia hermenêutica de um drama social específico”, ressaltando o quanto a cidade de Brasília já é caracterizada pela presença das gangues.

Arquitetura estimula formação de gangues

Para Miriam, a arquitetura da cidade – planejada por Oscar Niemeyer e internacionalmente conhecida – estimulou a formação de gangues. “A arquitetura de Brasília é das mais pérfidas que existe. Ela não possibilita nenhum tipo de mistura social. A questão das rixas entre grupos de quadras diferentes já existe há muito tempo, data quase da construção da cidade”, polemiza Miriam. O estudo, portanto, não se pretende um instrumento de orientação para análise de padrões flagrados fora da órbita de Brasília e das cidades-satélite do DF.

Ela crê que a opinião generalizada sobre a juventude é negativa. Em relação às gangues, sobre as quais a sociedade mal sabe quem é quem, a lógica e dinâmica que regem estes grupos, a opinião, logo, é pior ainda. “A sociedade tem medo do jovem, em geral. Nós mesmos acabamos criminalizando nossa juventude. Brasília tem que ser mais inclusiva. As secretarias de Educação, Saúde e Segurança Pública precisam se unir para propor políticas de inclusão para estes adolescentes”, propõe.

Para ter acesso à íntegra da pesquisa, clique aqui

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